quarta-feira, 13 de maio de 2015

A indubitável, mas questionável, história de All, o Orate. (Parte II)



Ainda hoje não sei distinguir o que me foi contado ou o que eu criei dessa história, mas acredito que seja ela toda verdadeira. Ao menos a parte que lhes conto, já o que All contou, não posso garantir nada. Mas ouçam, é uma bela história.


Eu estava curioso para ouvir o restante da história e, naquele tempo, não fazia ideia de quanto tempo levaria. A bem da verdade eu acreditava que seria curta, que resumiria-se apenas àquele ato, mas estava irrevogavelmente enganado. All não era um homem de poucas palavras nem de curtas aventuras, posicionava-se estoicamente perante seus espectadores e arrebatava todos com seus percalços.

"... tropas inteiras dos exércitos de Lughar, o medonho, cercavam-nos, não havia possibilidade ínfima de fuga. Fileiras e mais fileiras de Buggars por todo o vale, da porta de nossas casas até as encostas das Colinas Trigêmeas ao Norte. Centenas de milhares deles, trajando suas couraças de Pittar - uma espécie de monstro marinho de pele dura como aço negro - segurando suas lanças de corte estendido, com lâminas que iam da empunhadura até a ponta em sinuosas fincas feitas para retalhar o inimigo ou rasgar armaduras como papel.

Hoje vocês vivem em segurança
e no conforto de suas casas, livres de um Buggar ou um Ror, cercados apenas de homens comuns. Livres da magia repugnante que assolava nossas terras na minha infância. Perguntem ao velho Londhon, ou a mulher da casa de pedra, a velha Iva, eles lhes contarão sobre toda a podridão que vagava por nossa era. Embora eles tenham nascido quase no fim da minha adolescência, quando o mundo já podia respirar aliviado novamente."

O orate engoliu secamente, alguém estendeu-lhe uma cumbuca com água, era Bondodir, seu mais ávido ouvinte. All bebeu demoradamente e todos esperaram ansiosos. Aproveitei a pausa e surrupiei um pouco de leite de Anöntrella de uma mulher distraída pela história. Ela puxava um carrinho com algumas vasilhas da bebida, de certo estava levando para o queijeiro, mas demorou-se entre outros tantos. Tomei o leite fazendo caretas, pois estava denso como deveria estar para a fabricação de queijos daquele tipo, um gosto amargado e salgado, mas mesmo assim, melhor do que a água salobre que tinha tomado há pouco.

"Aqueles demônios chegaram de uma só vez, por todos os lados. Os poucos homens corajosos da vila foram os primeiros a morrer, ou foram mastigados por um Ror, ou transpassados por uma lança Buggar. Ouvíamos seus gritos que eram logo abafados pelos jorros de sangue de suas gargantas. Eu e meus amigos, continuamos escondidos, mas Rors são farejadores, quer dizer, depois descobri que mediam nossas temperaturas corporais através de glândulas localizadas sobre seus olhos. E era assim que eles nos achavam. 

Não demorou muito para que fôssemos encontrados. Primeiro ouvimos o trovejar da marcha passando pelas casas da vila, alguns gritos abafados, paredes ruindo, portas se partindo, som de ferro cortando carne e, por fim, a parede de nosso porão secreto ruiu. Dorovah, meu amigo, foi puxado para fora por uma pata gigantesca. Até hoje lembro-me do rastro de suas tripas, que iam de onde estava até a parede derrubada." - All suspirou sofrido.

"Cale a boca, velho!" - gritou um dos meus perseguidores. "Queremos o fugitivo do palacete do Inigualável S., sabemos que ele ainda está por aqui!" - gritou mais alto, chamando a atenção de todos. "A praça está cercada, verme de Tranteira, você não nos escapará!!!" - berrou.

Um novo tumulto começou. Estavam procurando-me, claro, mas rastejei para perto de uma poça d'água parada e esfreguei meu rosto, braços e pernas naquela lama pútrida enquanto muitos gritavam indignados. Sentei-me - ainda cobrindo-me com o manto roubado - perto de outros pedintes e miseráveis do grupo que estavam a uns cinco passos da turba e postei-me em protesto melancólico como os demais.

Os guardas do Indefectível S. começaram a expor sua violência dando pancadas em alguns dos homens ali, meros espectadores desafortunados. Claro, também havia alguns senhorios menos propensos ao trabalho que matavam algumas de suas horas ouvindo as destemidas histórias heroicas de All. A multidão começou a se espalhar. Alguns iam-se embora às pancadas, outros fugiam antes de tomá-las, mas estavam se dispersando. Eu precisava fazer alguma coisa para garantir o continuidade de minha vida.

"Alderdan, Piltrin, Astor, Janllen, e todos vocês, parem agora mesmo!" - impôs-se All entre seus ouvintes e os guardas abrutalhados. - "Eu sou e fui amigo de seus pais e seus avós, como é que têm coragem de tumultuar uma praça com pessoas comuns, como vocês mesmos, em nome de um homem como seu patrão? Esqueceu-se de quem levava seus remédios quando era uma criança doente, Astor? Janllen!, seus pais ainda frequentam essa praça, esqueceu-se disso? Piltrin, como pode deixar de lado todos os dias de conversas afortunadas que tivemos no ano passado? Hein, Alderdan, não existe mais compaixão nesse coração enamorado que pediu-me conselhos sobre Rohra? Tratam-nos como desconhecidos, mas esquecem-se que somos uma grande comunidade de amigos!"

Um a um os homens foram se acalmando, os que estavam mais distantes, naquela correria toda, voltaram cautelosamente para seus lugares. Os brutamontes do Incontestável S. foram desarmando-se, como feras domadas por anjos. Resignados, calaram-se e baixaram guarda. O tumultuo foi apaziguando-se e até mesmo os defloradores de donzelas ficaram para ouvir a voz daquele sujeito maluco, mas que todos, como pude perceber, respeitavam, um respeito, acredito eu, baseado no temor de sua história.

"Homens serão sempre homens! O que nos separa são seus pensamentos, mas todos são apenas homens, semelhantes. Se vivessem as desventuras que vivi, se vissem nossos reais inimigos, abraçariam-se em comunhão e clamariam a Yia por consolidação. Se um exército de Buggars e seus Rors avançassem por nossas fronteiras o que acha que S. faria por vocês? Daria-lhes abrigo em seu palacete? Não, meus caros, ele fugiria, junto com os outros de sua classe e deixariam todos vocês para sangrarem até a morte. Ouçam o que lhes digo, aqui, agora, somos o povo e o povo deve se manter amigo, pois o inimigo um dia há de voltar. Espero ter partido antes desse dia chegar... mas, até lá, devo contar tudo que sei para que - Yia nos livre de que isso aconteça - estejam preparados para o verdadeiro inferno!"

Os degoladores de Zihas deixaram-se levar pelas palavras do orate. All tinha a oratória que nenhum outro líder daquela comunidade possuía. Se tivesse que apostar num debate entre o Eloquente S. e All, poria todas minhas moedas roubadas no orate, com certeza. E olha que eu o conhecia há poucos minutos.

"Espero não mais ser interrompido por essa tarde..." - disse All prosseguindo.

Afeiçoei-me àquele velho. Tanto que até deixei de afanar mais alguns itens de homens desatentos que estavam próximos a mim. Fiz isso por All, bem, ao menos naquele instante decidi deixar algumas moedas me escaparem, apenas pelo bem da história.



continua...


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