sexta-feira, 3 de abril de 2015

Consertar e construir (revisão)


 Um conto antigo, uma "viajada" na ficção científica. Um texto que faz parte de um grande todo. Tenho muito mais dessa história escrita num dos meus cadernos. Aos poucos vou postando mais desta longa jornada. Ei-la:



Eu era produto de uma vida sofrida. Muitos me consideravam um nada. Mas, convenhamos, nunca ninguém parou para falar comigo direito. Eu vivia ali, no meio de toda aquela confusão. Sabia de minha existência somente pelo quanto eu já havia sofrido. Era duro, mas nada disso me abalava. Gostava de sofrer. Mentira! Melhor seria se eu dissesse que acostumei com isso. É, acostumei. Já não contava quantos dias tinha vivido. Não me lembrava de um dia ter comemorado um aniversário sequer. Não sabia responder a minha idade. Certa vez, um estrangeiro trocou meia dúzia de palavras comigo. Quando me perguntou a idade eu não respondi nada. O silêncio se fez. Um tempinho depois eu perguntei: “quantos anos acha que eu tenho?” Ele sorriu e respondeu: “aposto que mais do que aparenta ter.” O estranho agradeceu-me a conversa e partiu dizendo que voltaria. E é aqui que começa a parte interessante de minha vida. Quando tudo o que eu fazia era viver em meu próprio mundo. Fechado ao convívio e a amizades. Os meus dias eram pesados e perturbadores. Não que tudo o que eu tenha vivido anteriormente tenha sido chato ou desimportante. Quisera eu ser assim, um ser comum. Desprovido de histórias pra contar. Não! Não seria uma boa vida...

Eu estava ali, no mesmo lugar onde sempre ficava depois de realizar os afazeres da manhã. Eu não sabia precisar quanta gente passava por lá todos os dias, mas de acordo com os dados oficiais do espaçoporto, seriam trilhões de transeuntes dos mais variados lugares do universo. Eu tinha aquela loja que quase ninguém reparava. Na verdade, eu não podia chamar aquilo de loja, afinal, um vão numa parede não podia ser considerado uma loja. E era assim. Eu, meu balcão – que eu mesmo fiz – e a minha caixinha de ferramentas. Eu só precisava daquilo pra poder consertar praticamente qualquer coisa que existisse. Esse era o meu dom. Não era muita gente que sabia disso. Acho que nem me davam atenção por essas coisas que eu fazia. Ninguém achava que consertar coisas era difícil. Pra mim não era mesmo. Se me lembro bem, o serviço mais longo que eu realizei me tomou umas duas horas. Era o tipo de coisa que uma equipe de engenheiros gastaria semanas para conseguir. E, mesmo assim, eu não precisei de outra coisa senão a minha caixinha de ferramentas. Acham que me deram atenção por isso? Claro que não. Não ganhei sequer um obrigado. Não importa mesmo. Eu já não ligava para as condições das pessoas e nem para o modo que tratavam umas às outras. Eu vivia ali, daquele jeito, indiferente como aqueles à minha volta, apenas concentrado nos meus talentos. Eu não morava naquele lugar, pra ser mais exato, eu não morava em lugar nenhum. Guardava algumas coisas que eu precisava ali, na loja. Mais nada. Quando queria dormir bem, alugava um quarto num dos milhares de hotéis que existiam ali mesmo nas redondezas. Fora isso, dormia sempre ao relento, em uma das centenas de praças. Onde eu vivia não era proibido fazer isso. O risco era nosso mesmo. Os verdadeiros moradores daquela área portuária acabaram me conhecendo e souberam quem eu era, embora não nos falássemos, apenas um respeito sigiloso. Mas ninguém era besta pra se meter comigo. Umas duas vezes isso até chegou a acontecer, mas não é o que eu quero falar agora. 

Bom, eu estava na minha loja, num rotineiro dia qualquer, criando algumas coisas com as peças que sobravam dos aparelhos e pertences de meus clientes, quando chegou um senhor todo afobado. Ele falava rápido e numa língua que eu não conhecia. Pedi para ele esperar um minuto, fazendo o gesto com as mãos. Tirei da gaveta um tradutor que eu já tinha feito há alguns anos e o liguei. O visitante começou a falar novamente e eu fiquei ali tentando traduzir, mas nada aconteceu. Pedi para ele parar novamente e comecei a perguntar em qual língua, das que eu conhecia, ele queria falar. Lá pela décima tentativa ele me entendeu. Fiquei surpreso, pois era uma língua que não se ouvia muito por ali, mesmo sendo um local de tantas culturas e de tantos lugares distantes e diferentes. Ele não mediu palavras e foi logo me dizendo: “conserte isso pra mim” e me apontou um cilindro metálico de um material não muito comum em nosso planeta. Sorri, dizendo que não sabia o que era aquilo. E olha que, com minha profissão, eu acabo vendo muito mais coisas do que um dia sonhei existir, mas, aquele artefato específico, eu não conhecia. Ele explicou rapidamente que aquilo era um tipo de transmissor, mas que fazia algumas coisas diferentes. Peguei o objeto em minhas mãos e fiquei surpreso com seu peso. Era muito denso, muito pesado. Fiquei observando aquilo entre meus dedos e fui descobrindo suas particularidades. Em menos de um minuto eu já sabia como abri-lo e, em mais alguns minutos, já sabia até como operá-lo. A cada novo segundo eu descobria uma nova operação e função. O senhor ficou ali parado, como a me esperar. Achei que ele queria um serviço imediato e assim me prontifiquei. Eu estava entretido com o mecanismo e com suas funções e, depois de exatos treze minutos fuçando, percebi que não havia defeito algum. Remontei suas partes, fechei-o e entreguei-o ao cliente e disse: “não existe defeito neste aparelho, está em perfeito estado”. O sujeito o pegou de minha mão. Sorriu maravilhado e respondeu: “sei disso! Estou admirado com a sua eficiência. Na verdade isso era um teste simples que apliquei em todos os seus colegas de profissão aqui do setor. Nenhum foi capaz de sequer entender o mecanismo ou mesmo abri-lo. Quero contratá-lo para um serviço local. É aqui perto e não vai levar mais do que alguns dias. Ah, a remuneração é suficiente para mais do que dez dos seus dias de trabalho." Não me importei com o teste e nem com a quantia oferecida, o que me espantou foi o fato do viajante ter agora falado na minha antiga língua natal. Antes de voltar ao assunto perguntei: “conhece meu planeta?” Ele sorriu novamente e afirmou positivamente com a cabeça. Ficou em silêncio como se não precisasse me dizer mais nada. Olhei pra ele com calma e disse: “Agradeço a preferência, mas não preciso de nenhum trabalho além do que já possuo. São dez ciclos!” - dei o preço de meu serviço, esperando que aquela conversa terminasse ali. O desconhecido encostou o punho no meu painel de serviços e depositou-me cem dos seus ciclos. Antes que eu pudesse objetar pela quantia paga ele foi logo falando:

— Presumo que não saiba de quanto estamos falando aqui...

— Sinceramente agradeço, não é do meu interesse.

— Não quer realmente saber do que estou falando?

— Tenho a quantia que preciso pra viver, não quero e nem almejo mais.

— Não me refiro à quantia. Estou lhe oferecendo a oportunidade de construir o que sempre desejou construir.

Quem sorriu desta vez fui eu. Perguntava-me: “do que será que ele estava falando?” Até então, nem eu mesmo sabia o que é que eu queria construir. Eu sempre montava as coisas que me agradavam e pronto. Sem mistérios, sem interesses. Por fim ele disse:

— Venha comigo até o espaçoporto. Lá eu mostrarei no que exatamente estamos envolvidos. Não tomarei mais do que alguns dos seus minutos. Você avalia o que vai ver e me diz se quer ou não. Só lhe peço isso, pode ser?

Fiquei imaginando o que poderia me fazer aceitar um trabalho que não planejava ter. E, movido pela curiosidade, acabei por aceitar o convite. Avisei que iria, que me esperasse um instante enquanto ajeitava a minha caixinha de ferramentas. Organizei o balcão como gostava e fechei a loja. Aquele foi o primeiro dos meus últimos dias. E digo mais, se soubesse no que iria me meter, mesmo assim, teria feito tudo novamente. 


Publicado originalmente no dia 19 de setembro de 2010, Domingo.


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