segunda-feira, 30 de março de 2015

2 (dois)




 Leia as duas partes anteriores a esse conto:  0 (zero) e 1 (um)



Voltei boquiaberto para o meu lugar. Desta vez, de frente para o homem. Prossegui em passos lentos. Sem olhar para o lado enquanto passava por ele. Coloquei meu livro sobre a mesa e fixei meu olhar neste objeto. Sentei-me ainda olhando para o livro. Pousei o chapéu ao meu lado, no banco. Senti meus lábios tremerem e mordisquei-os na intenção de para-los. Criei coragem e olhei para o estranho homem pela primeira vez. Fatos:

   - 1. Eu não olho ninguém diretamente nos olhos.

   - 2. Eu não sinto medo, mas naquele dia eu senti.

   - 3. Eu ainda sinto a falta dele, mas, quando chego em casa, sei que ele não mais voltará.

Seus olhos me fisgaram instantaneamente. Olhos estupendamente azuis. Azuis claros como o céu. Suavemente azuis. Olhar profundo, penetrante e ao mesmo tempo longínquo. Seu olhar tomava-me a alma. Senti meu corpo relaxar. Estava hipnotizado. Demorei-me minutos naqueles olhos. Por fim, lentamente, senti-me livre para olhar-lhe a face inteira. Era um rosto comum. Como o de todas as outras pessoas. Seus cabelos eram espessos, brancos, lisos, saiam aos montes pelos cantos do seu chapéu. Sobrancelhas grossas e desajeitadas num tom cinza, quase alvo. O rosto marcado pela idade, talvez sessenta, ou setenta, talvez até menos. A pele flácida de seu rosto fazia sulcos abaixo e nos cantos dos olhos. Olhava-me sereno, mas ao mesmo tempo sério. A boca possuía lábios finos, simples traços retos, e não esboçavam sentimentos. O queixo salpicado de grossos fios de barba por fazer, também com pelos brancos. Seu nariz era protuberante, mas não exagerado, apenas com contornos masculinos marcantes. Ele manteve o mesmo olhar até que eu terminasse de olhá-lo por completo. Eu terminei observando suas mãos postas sobre a mesa com os dedos entrelaçados.

   - 1. Invejei-lhe a bela face marcada pela idade sem, no entanto, demonstrar a perda da jovialidade. 

   - 2. Percebi que eu não tinha sido atendido até então. Queria café. Urgentemente. 

   - 3. Pela primeira vez, em mais de vinte anos, estava disposto a conversar com alguém.

"Você me surpreende." - disse-me.

"Como sabia dos livros? Quem é você?"

"Pressinto seus movimentos, mas, entretanto, você escolhe sempre outros. Interessante."

"Você ainda não me respondeu." - insisti sem sentir-me irritado, o que era peculiar para mim.

"As respostas estão nas entrelinhas. Você me fascina." - disse-me confessando uma admiração.

"Por favor, como sabia dos meus livros? Quem é você?" - senti-me implorando respostas.

Seus olhos se moviam avaliando-me. Sua boca fazia minúsculos movimentos quando falava. Mas seu corpo continuava estático.

   - 1. Estava preso ao meu intrigante desconhecido, mas queria muito pedir um café.

   - 2. Realmente sentia-me despreocupado e relaxado olhando seus olhos.

   - 3. Por mais que eu quisesse, não pediria um café naquele dia.

 "Sei de todos os seus dias desde que sentiu-se solitário. Lembra-se quando aconteceu isso pela primeira vez?"

"Sempre fui solitário" - respondi na defensiva - "Sua resposta só aumenta a minha curiosidade. Quem é você?"

"Não se apresse. Temos muito tempo. Quero surpreender-me mais com suas escolhas." - fez uma pausa nítida e prosseguiu em seguida - "Sou aquele que é ausente no começo e sou aquele que é presente no fim."

Falava-me enigmaticamente. Sentia verdade em suas palavras, mas não acreditava em sua existência. 

"Você não existe." - acusei-o.

"Magnífico!" - disse alto e movendo pela primeira vez suas mãos batendo uma palma sonora. "Você me excita. É fantástico." - e sorriu ao terminar a frase expondo seus dentes lineares e antigos.

"E você faz-me crer que és apenas um delírio." - soltei.

Ele sorriu mais largo e recostou-se em seu banco. Cruzou novamente os dedos e pousou as mãos sobre a mesa outra vez na mesma posição.

"Nesses mais de vinte anos, sequer um único dia, falhou em surpreender-me. Estava certo sobre você."

"Do que é que você está falando? Afinal, o que quer de mim?" - estranhamente, eu não perdia a paciência, pelo contrário, queria ir a fundo naquele mistério.

Alguns fatos sobre mim:

   - 1. Nos meus quase quarenta anos de vida adulta nunca deixei de tomar ao menos uma xícara de café.

   - 2. Meu corpo queria café mais do que eu queria respostas.

   - 3. O chapéu daquele homem era do mesmo modelo do meu.

"Eu fiz uma pergunta e você não respondeu. Quando foi que começou a sentir-se solitário? Mas agora diga a verdade." - acusou-me.

Eu sempre fui só. Fui filho único. Meu pai morreu cedo. Minha mãe também. Fui criado por minha tia, mas vivia isolado. Deprimido. Estudei, formei, trabalhei, tudo isso sempre sozinho. A vida inteira fui uma pessoa solitária. Exceto naqueles meus três anos mais felizes, quando o conheci... Mas... ele também se foi...

"Quando voltei a sentir-me só novamente..." - respondi com muito pesar. 

"As pessoas nunca são solitárias antes de perderem uma real companhia. Antes de sua perda, sua verdadeira perda, você não conhecia a real solidão. Agora você a conhece. E, desde este dia, eu o conheço."

Fiquei confuso. Meu companheiro tinha muitos amigos, poucos deles foram despedir-se e, este homem não estava entre eles.

"Você não estava lá, eu lembraria-me." - afirmei.

"Estou ficando entediado. Suas dúvidas às vezes me cansam."

Olhei-o ressentido. 

Súbito, uma vontade latente veio-me à mente e desviei meus olhos do estranho. Olhei para o balcão daquele estabelecimento e pedi à atendente: "Um café, por favor!"

"Surpreendente!!!" - exclamou a voz do desconhecido nitidamente excitada, assustando-me de tão volumosa.

Virei-me de volta para o estranho, mas não havia ninguém ali. Somente o reverberar de suas gargalhadas.


continua...         Leia a continuação deste conto: 3 (três)


 

5 comentários:

  1. Cadê o três?
    Estou cheia de hipóteses e preciso comprová-las ou substituí-las.
    Cadê o três?
    Eu não mudo de lugar e não peço meu café até o 3 chegar!
    Eu tenho todo o tempo do mundo.

    "Invejei-lhe a bela face marcada pela idade sem, no entanto, demonstrar a perda da jovialidade."

    Adorei a frase!

    beijos

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    1. Telma, como agradecer todos os elogios e comentários? Acho que um hiper obrigado e um mega valeu começam a pagar essa dívida!

      Agora, observe atentamente o link para a terceira parte na última frase do texto "Leia a continuação deste conto: 3 (três)"

      Acho que se você clicar nesse "3 (três)" aparece a outra parte!!!! KKKK

      Valeu, beijão

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  2. Gostei deste conto, mto bom mesmo! Acho que vou ler todos os seus...

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  3. Gostei deste conto, mto bom mesmo! Acho que vou ler todos os seus...

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    1. Que bom que gostou, espero que leia todos mesmo! Valeu o apoio!!!

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